Internacionales
NÃO É FICÇÃO: OS CARROS VOADORES COMEÇAM A GANHAR OS CÉUS
Um sonho de mais de um século está se tornando realidade. Mas não do modo como se pensava
David Cohen
Centenas de pequenas fábricas ou pequenas unidades de indústrias já estabelecidas testando uma miríade de modelos muito diferentes uns dos outros, produzindo poucas unidades de forma quase artesanal. Esse era o cenário da produção de automóveis do final do século XIX ao início do século XX. E esse mesmo cenário se apresenta agora, na produção de “carros voadores”. Será um sinal de que, desta vez, com o perdão do trocadilho, essa indústria decola?
A ideia em si é quase tão antiga quanto a dos próprios carros que trafegam em estradas. Nos Estados Unidos já havia um projeto de carro voador, com patente inclusive, na década de 40 — não a do século XX; a do século XIX (a máquina cuja patente data de 1841 seria movida a vapor).
O mercado para carros assim nunca se desenvolveu. Mas a ideia esteve sempre aí. Na ficção, de tempos em tempos surge um representante: o calhambeque voador de Chitty Chitty Bang Bang, o DeLorean que viaja no tempo (pelo ar) do filme De Volta para o Futuro, o meio de transporte do desenho animado futurista Os Jetsons, o carro em que Harrison Ford viaja para longe no distópico filme Blade Runner…
Os engenheiros tampouco desistiram. Com uma frequência razoável, ao longo das décadas têm aparecido inúmeros projetos, que sempre têm de lutar contra o ceticismo dominante — a tal ponto que o pioneiro das linhas de montagem, Henry Ford, reagiu, ainda nos anos 1920: “Vocês podem rir, mas os carros voadores virão”.
Aparentemente, a profecia está se cumprindo, com cerca de um século de atraso. Em janeiro, a Eslováquia concedeu um certificado de voo para o AirCar, da empresa Klein Vision. O documento o autoriza a voar pelos céus do país. O carro, um modelo esportivo com asas retráteis, leva, segundo a empresa, dois minutos e 15 segundos para se transformar em avião. A partir daí, ele precisa de uma pista com pelo menos 250 metros livres para ganhar impulso e voar, sendo capaz de atingir uma altura de 5.500 metros e velocidade de cruzeiro de 300 km/h.
A certificação veio depois de mais de 70 horas de voo e mais de 200 pousos e decolagens desde 2020. Em junho passado, o AirCar se tornou o primeiro modelo de automóvel voador a realizar um voo entre duas cidades (Nitra e Bratislava, um percurso de 90 quilômetros por estrada, cerca de 70 quilômetros em linha reta).
“O certificado é a confirmação final da nossa capacidade de mudar o transporte de meia distância para sempre”, afirmou o inventor do AirCar e dono da Klein Vision, o eslovaco Stefan Klein, em comunicado à imprensa.
De fato, o AirCar está muito próximo do que comumente imaginamos quando falamos de um carro voador. Você sai de casa, tira o carro da garagem, vai rodando pela estrada e, lá pelas tantas, de preferência antes do primeiro pedágio, dá literalmente uma volta por cima do trânsito. Seu motor é um BMW de combustão interna com potência de 139 cavalos, o que significa que você poderia encher o tanque no posto de gasolina mais próximo (embora haja grandes obstáculos, como veremos adiante) e voar até 1.000 quilômetros de uma só vez.
A chance de esse carro dominar a indústria do futuro, porém, é diminuta. Não é só por causa do preço (ainda não há previsões, mas barato com certeza não será). Nem é porque roda a gasolina — os sócios prometem uma versão elétrica quando houver baterias mais leves. A grande questão é que aquilo que povoa nossos sonhos pode ser realizável, mas quase nunca é muito prático.
Não é à toa que um predecessor do AirCar — cujo nome era quase idêntico —, o Aerocar, chegou a voar em 1949 (sim, você leu direito), ganhou certificação das autoridades aeronáuticas americanas em 1956, começou a ser fabricado… mas só seis exemplares saíram da fábrica.
O tamanho dessa indústria
Quando um banco de investimentos como o Morgan Stanley prevê que a indústria dos carros voadores pode valer 2,9 trilhões de dólares em 2040 (no cenário mais otimista), ou 615 bilhões de dólares (no cenário mais, digamos, pé no chão), não é a automóveis como o AirCar que ele se refere. É, principalmente, ao tipo de máquina apelidado de e-VTOL — sigla para decolagem e pouso vertical movido a eletricidade, em inglês.
Essa tecnologia inclui mochilas motorizadas que podem levar uma só pessoa (algo como aquela usada no desfile da escola de samba Grande Rio, do carnavalesco Joãosinho Trinta, em 2001) e os mais diversos equipamentos capazes de transportar de uma ou duas pessoas até dez, todos eles muito mais parecidos com os atuais drones do que com o que costumamos chamar de carros.
Segundo a consultoria americana Allied Market Research (AMR), tudo isso junto representaria um mercado de 17 bilhões de dólares já em 2025, e de mais de 110 bilhões de dólares em 2035. Os usos seriam bastante diversificados. As mochilas, por exemplo, poderiam ser úteis para os paramédicos alcançarem uma vítima de acidente mais rapidamente. Mas a maior aplicação para essa tecnologia seria no serviço de táxi.
Se até helicópteros conseguem uma fatia desse mercado, imagine aparelhos mais seguros — graças a múltiplos rotores e sistemas de back-up, em vez de uma única hélice propulsora —, muito menos barulhentos e, principalmente, bem mais baratos (algo possível por gastarem um quinto da energia). Para alguns trajetos, esses drones gigantes podem ser quatro ou cinco vezes mais rápidos que um táxi normal, com preço semelhante.
Modelos como o do AirCar podem estar incluídos na indústria, é claro. Mas para um nicho. A própria autorização de voo eslovaca dá pistas disso: ela exige um brevê de piloto. Ou seja, quando sua produção começar, supostamente em 2023, ele concorrerá com os pequenos aviões, não com os automóveis. Quanto àquela história de encher o tanque no posto de gasolina, é provável que os reguladores apliquem ao AirCar o mesmo rigor que aos aeroplanos, ou seja, deverão abastecer o tanque em postos controlados, para garantir um nível de pureza no combustível que diminua riscos de acidente.
Não é que o mercado dos aviões pequenos seja desprezível. Ele movimenta cerca de 5 bilhões de dólares no mundo e as projeções são de que dobre até 2026. Capturar um pequeno naco disso já seria uma senhora conquista para a Klein Vision.
Mas a indústria automobilística é cerca de mil vezes maior: teve uma receita de 5 trilhões de dólares globalmente e deve chegar a 9 trilhões de dólares em 2030, segundo a companhia de análises de mercado alemã Statista. É nesse lago muito mais amplo que os e-VTOLs estão se posicionando para mergulhar. De acordo com a consultoria britânica L.E.K., cerca de 300 empresas estão trabalhando em modelos desse tipo.
Mais do que o voo de um AirCar, os números apontam a revolução em andamento. De acordo com um relatório da consultoria McKinsey, no ano passado, os investimentos em mobilidade aérea futura foram de 7 bilhões de dólares — mais que o dobro do que foi gasto no setor em uma década. Além disso, cinco empresas abriram o capital, com um valor de mercado conjunto de 10,7 bilhões de dólares ao final do ano. E há uma clientela ansiosa: houve encomendas de 6.850 aparelhos, totalizando negócios de 26,1 bilhões de dólares, dez vezes o valor das encomendas de aeroplanos convencionais (um mercado que andou parado por causa da pandemia).
Não se trata mais de empreendedores que trabalham em suas garagens com o sonho de destronar gigantes (embora haja estes também, sendo Klein um exemplo). Entre os que apostam na nova tecnologia estão montadoras tradicionais, firmas de aviação e gigantes de tecnologia. Também os governos estão levando esse futuro a sério. As autoridades de aviação americanas já trabalham no processo de autenticação de cerca de 30 tipos de e-VTOL, segundo a L.E.K.
O desafio da regulação
O que está fazendo esse mercado desabrochar não é alguma solução técnica que rompeu barreiras. As questões técnicas já estão resolvidas há muito tempo. O problema que está começando a ser encarado agora é o da vontade: tanto das pessoas, porque sem um número suficiente de clientes potenciais não há mercado, quanto a de governos, porque a indústria aérea é uma das mais bem reguladas do mundo.
Apesar de todo o otimismo, ainda estamos no início do processo. “Vai levar mais tempo do que as pessoas imaginam”, disse Ilan Kroo, um professor de Stanford que já foi executivo-chefe da Kitty Hawk, empresa de máquinas voadoras do cofundador do Google Larry Page. “Há muita coisa a fazer antes de os reguladores aceitarem esses veículos como seguros”, afirmou no ano passado ao jornal The New York Times.
Alguns exemplos de questões que precisam ser respondidas: os aviões em geral precisam carregar combustível suficiente para 30 minutos extras de voo, para o caso de algum imprevisto; quanto se exigirá de sobra nas baterias dos drones de passageiros (que não costumam ter tanta autonomia)?
Outras questões envolvem o controle aéreo. Como evitar acidentes se forem permitidas decolagens de qualquer lugar, a qualquer hora? Também as questões de infraestrutura precisam ser resolvidas: que tipo de estacionamento, com qual sinalização, um shopping center poderia anunciar que aceita a entrada de carros voadores?
E que tipo de licença será exigida para cada tipo de aparelho? Os helicópteros têm rotas urbanas autorizadas em São Paulo, por exemplo. Mas a multiplicação de veículos voadores exigiria uma revisão completa das autorizações.
Normalmente, novas tecnologias irrompem no mercado e os legisladores vêm depois, bem depois, para regular seu uso — basta pensar nas redes sociais ou nas empresas de carona compartilhada. No caso dos céus, é impossível assumir a postura de “fazer primeiro, perguntar depois”.
Isso sem falar em problemas como o ruído ou o crime. Embora bem menos barulhentos que helicópteros, os drones gigantes têm múltiplos rotores e deverão aumentar o nível de ruído nas cidades. Eles também têm o potencial de ser usados como armas por terroristas ou para criminosos realizarem ações armadas (ou fugas de presídios), como alertou o advogado Morry Bailes, ex-presidente do Conselho de Direito da Austrália, em artigo para o InDaily, versão eletrônica do antigo jornal The Independent.
O impacto da necessidade de regulação pode ser avaliado pelo exemplo do AirCar. Aqueles dois minutos e 15 segundos necessários para o carro abrir asas e se tornar um avião podem facilmente se converter em horas, se levarmos em conta que para alçar voo ele precisará passar pelas usuais checagens de rotas aéreas feitas por alguma autoridade. Fora isso, ele precisará de permissão para abrir as asas numa estrada, o que poderia elevar os riscos de acidente com outros veículos.
Por essas e outras razões, o e-VTOL é uma possibilidade bem mais real. Especialmente se for usado como táxi — com rotas pré-estabelecidas, que podem ser aprovadas de antemão, além de limitar bastante a necessidade de infraestrutura. Mais ainda se forem pilotados automaticamente. No ar, há muito menos obstáculos a desafiar os sistemas de navegação automática, muito menos chances de uma bicicleta ou um corredor surpreender o veículo.
De acordo com comunicado da Administração de Aviação Federal (FAA) dos Estados Unidos, os veículos de mobilidade urbana deverão se beneficiar de um sistema que usará “máquinas altamente automatizadas para transportar passageiros ou carga em altitudes baixas nas áreas urbanas e suburbanas”. Esse sistema deve ficar pronto, segundo a agência, “nos próximos anos”.
Essa previsão é muito similar à que tem sido feita há mais de um século: os carros voadores sempre são anunciados para “daqui a alguns anos”. As frustrações nunca foram provocadas por insuficiência técnica. O problema era que as pessoas simplesmente não queriam essas máquinas. Ou, pelo menos, não as queriam ao custo que elas implicavam.
De um lado, o entupimento das metrópoles está tornando esse custo mais aceitável. O prefeito de Miami, Francis Xavier Suarez, diz que sua cidade está avaliando garagens, telhados de prédios e outros locais como possíveis pontos de decolagem para os e-VTOLs, porque eles estão se mostrando mais eficientes e ambientalmente positivos do que os meios de transporte atuais.
De outro lado, a revolução dos drones ofereceu um novo caminho. Como em tantas outras adoções de tecnologia (o celular que tomou o espaço da máquina fotográfica, por exemplo), é mais fácil um aparelho aumentar de tamanho e ganhar novas funções do que uma solução antiga (o avião, no caso) ser reduzida
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